Art gallery & shop in Lisbon

Press Feira Feita

 

Janeiro 2021 // Feira Feita é um meio de divulgação de artesãos-autores com produção em Lisboa, bem como dos locais onde se pode fazer, dando a conhecer as suas histórias através de entrevistas. [ Fica a conhecer o projecto aqui > ]

 

Oficina Marques - Uma história por Ágata Xavier 

 

Nos tempos livres, passeiam por feiras, mercados ou na praia, sempre com o mesmo objectivo: recolher objectos. Levam-nos para a sua oficina, no topo da rua Luz Soriano, no Bairro Alto, de portas abertas desde 2014. Gezo Marques e José Aparício Gonçalves são a dupla por trás da Oficina Marques, um espaço que vale por três, pois é um atelier de trabalho, loja e galeria. Animais exóticos, homens barbudos, vasos em forma de cabeça, relicários. Encontramos de tudo um pouco neste universo carregado de muito: muito amor, muito tempo, muita dedicação.

 
 
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Como é que chegaram ao nome Oficina Marques?
Gezo - Quando surgiu a ideia de baptizarmos o espaço, apareceram aqueles nomes mais comuns como estúdio, atelier... Achámos tudo muito pomposo para o tipo de trabalho que fazemos: um trabalho manual, que custa, que sua, que é duro.
José - "Meter a mão" é o mais importante, daí o nome ser oficina. É lá que a magia acontece e se guardam as madeiras, o barro, as cerâmicas, os papéis, as tintas e uma série de máquinas de trabalho.

Quando é que abriram a Oficina?
G - A oficina é a continuação de um projecto inicial. Tive um atelier à frente do Conservatório, também no Bairro Alto, que era um projecto a solo. Sempre gostei de fazer e materializar coisas — sou publicitário de profissão e tinha de ter um canal onde extravasasse, usasse as mãos. Foi uma soma de interesses em comum que nos levou a ter este espaço: é maior, mais amplo, tem um espaço de exposição das coisas que são criadas cá. Antigamente tinha um lugar só de produção, mas aqui o espaço está dividido em três: oficina (onde temos as ferramentas e os materiais que coleccionamos), a loja (com objectos que vamos produzindo e outros que fazemos curadoria), e a galeria, onde desenvolvemos as exposições. É um livro em branco, muito mutante, onde contamos histórias diferentes.
J - Estudei design, fiz vários cursos de impressão, fiz o curso de serigrafia e encadernação da Oficina do Cego, cursos de performance, de vídeo. Sempre procurei várias técnicas e diferentes meios de expressão. Há seis anos fiz um mestrado em gestão cultural no ISCTE. Foi muito interessante e acredito que, para além de pormos as mãos no trabalho, também é importante sabermos gerir o negócio. Foi nessa altura que nos conhecemos.

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Qual é a mais valia de ter um espaço destes, acessível ao público, e com estas características?
J - A mediação entre a nossa produção, a venda e o contacto com o público é directa. Nós produzimos livremente, e o nosso pensamento é livre, mas há um contacto e uma sensibilidade exterior que é muito interessante. É verdade que as peças nascem de nós, mas a partir do momento em que elas saem e passam para a galeria e para a loja, elas passam a ser também de outras pessoas. Uma vez entrou aqui uma senhora que estava a passar na rua, ela já tinha ouvido falar de nós mas nunca tinha conseguido cá vir. Naquele dia entrou e passou aqui a manhã inteira a chorar. Foi só isso e depois foi-se embora. Nesse momento percebi o que estávamos a fazer. Estamos aqui para falar com outras pessoas...
G - Ela não se expressou mas em cada quadro ou trabalho que via, ia tendo essas sensações. Ficou transparente em relação àquilo que as peças lhe diziam. É uma experiência quase como o teatro: você tem a resposta imediata do público.

Falem-nos das vossas peças. Vão desde relicários a vasos, passando por mesas em madeira.
J - As peças são várias coisas — e têm leituras diferentes para pessoas diferentes. A certa altura pensámos: "O que somos nós?". A oficina é um organismo que tem crescido e se desenvolvido. Nós estamos aqui e somos a cara do projecto, mas a Oficina é um organismo que tem a sua vida. Ela vai-nos ensinando os caminhos e, como qualquer ser vivo, às vezes as direcções mudam.
G - E isso você só sente, recebendo as pessoas. As pessoas vêem uma peça de cerâmica feita e nós estamos a produzir aqui. Elas podem ver como é feito, podem ver um pouquinho deste universo e isso acrescenta valor às peças.

Qual é a importância da manualidade nas vossas vidas?
J - Faz parte de nós a ideia de que a manualidade é importante. E cada vez mais sentimos que o mundo precisa dessa visão do "fazer as coisas", de se compreender o processo e o que está por trás disso. Quando compramos um prato, não fazemos ideia do que está por trás — e mesmo o processo industrial tem coisas que não conhecemos. Aqui podemos falar sobre isso, do tempo e daquilo que pões dentro de uma peça. Hoje consumimos qualquer coisa muito rápido, mas achamos importante consumir com base nessa ideia: como é que a coisa foi feita, quem é que a fez.


Onde recolhem algumas das peças sobre as quais trabalham?
J - Na rua, nas feiras, na praia, nos passeios.
G - É do lixo ao luxo. Os nossos fins de semana são muito recheados. No Domingo, que é folga, os nossos olhos estão mais atentos do que nunca. Queremos ver a praia, as velharias... é um dia intenso, que começa muito cedo e, muitas vezes, passamos aqui na oficina para deixar as coisas que recolhemos. Estamos treinando cada vez mais os olhos para estarmos atentos a possíveis materiais. De vez em quando, vamos à praia e recolhemos uma série de plásticos, outras vezes voltamos com conchas, cordas e paus. Às vezes fazemos visitas a lojas que vendem objectos para bijuteria. Temos fontes muito diversas. Guardamos tudo nestas caixinhas que, na hora certa, iremos abrir.


Existe alguma relação entre estarem no Bairro Alto e aquilo que fazem?
J - O Bairro Alto é fonte de matéria-prima. Quantas vezes estamos a vir para cá e encontramos móveis, cadeiras, caixas, coisas aleatórias que se calhar morreram na sua função inicial mas, para nós, são matéria-prima. O Bairro Alto conta muito na história da Oficina, ela é o que é porque está aqui: está em Lisboa, está neste bairro, tem esta energia.
G - Como ainda é um bairro relativamente preservado e existem muitas pessoas que vivem aqui, esse contacto é muito próximo.


Como artesãos, a Oficina deixa de ser um espaço de trabalho para ser, também, o vosso espaço pessoal.

Como gerem esse equilíbrio entre o que é trabalho e o que é lazer?
J - Gosto de não estar cá, mas também não gosto de estar no sofá. Por isso a linha entre trabalho e não trabalho é muito ténue. Não me queixo, acho que é um privilégio o nosso trabalho ser aquilo que amamos fazer. É difícil e é preciso sermos um pouco rígidos connosco, senão entramos num ciclo em que sentes que tens de estar sempre a fazer coisas (e depois perdes o prazer de as fazer).
G - O equilíbrio e a disciplina são importantes. Se me deixarem, estou aqui muito tempo. Vem uma fome de produzir e fazer... que depois temos de controlar. O facto de ser o nosso atelier, envolve uma noção de disciplina, de espaço e de tempo. Ajuda-nos a produzir organizadamente. O Zé trouxe muito isso, o método. Não é freestyle. Nós temos um trabalho disciplinado, que começa à hora e acaba à hora.
J - Com a pluralidade de materiais, se não fosse assim, tornar-se-ia caótico. Há muita gente que entra aqui e diz "Que arrumado!". Mas, mais do que arrumado, está organizado. Chega uma altura em que olhamos para as coisas que compramos nas feiras e olhamos para aquilo ou como matéria-prima ou como lixo: tem de haver um filtro...
G - ... para não sermos só acumuladores. Há uma linha muito fina entre coisas que são ingredientes e que devem ser guardadas, limpas, armazenadas e o que já não tem utilidade.

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Quais são os materiais que utilizam e como aprenderam a trabalhá-los?
J - Há coisas que nascem connosco. Podes estudar para fazer uma coisa mas não significa que a vás fazer. Outras são apetências que nascem contigo. Tanto comigo, como com o Gezo, é algo natural em nós. O Gezo estudou publicidade, eu estudei design e fomos fazendo uns cursos e aprendendo.
G - No meu caso, aprendi muito através da observação. Tinha um pai que fazia muitas coisas no quintal de casa. A minha mãe também, mas era diferente: transformava roupa, pintava a casa porque já estava cansada da cor que tinha, pintava móveis. O meu pai era engenheiro mecânico e tinha uma oficininha onde fazia máquinas. Acho que o meu grande professor foi a curiosidade e a observação. Não tenho curso nem de marcenaria, nem de belas-artes mas, é como o Zé falou, estava dentro. Há uma necessidade de materializar e de exprimir, e aí você vai buscar recursos.
J - A minha mãe é costureira e tinha um atelier em casa. O trabalho manual sempre fez parte de mim, porque sempre vi pessoas a trabalhar. Neste caso era roupa, mas o processo de criar, de passar do tecido a uma peça, fez parte de mim. Naturalmente tinha apetência para isso, mas também fiz cursos. É importante aprender com pessoas que sabem fazer, pessoas interessantes. Cruzei-me com pessoas que efectivamente sabiam fazer as coisas e que sabiam ensinar. Em serigrafia tive um excelente professor mas, se calhar, a melhor coisa que ele me ensinou foi "Olha, um atelier precisa de ser limpo senão o processo não vai correr bem". Aprendi a fazer serigrafia com ele, mas não me vou esquecer nunca dessa mensagem.
G - A cerâmica é um bom exemplo disso, também. É um exercício, no meu caso, de paciência. É um material onde imprimo o calor da mão, a força, mas têm de se respeitar uma série de coisas. Não adianta fazer à maluca senão vai rachar, vai explodir, vai estragar o forno. Há uma série de técnicas que você vai ter de aprender e de se adaptar também.
J - A cerâmica entrou na nossa vida em conjunto. Decidimos fazer na Sedimento e foi um óptimo sítio para aprender, a Maud e a Úrsula foram excelentes professoras. Aprendemos em conjunto, tivemos bons professores, mas o material também é um bom professor: ele ensina-te o que podes ou não podes fazer. Tanto no barro como na madeira, há coisas que só descobrimos a fazer. Há uma música do Rodrigo Leão que ouvimos muito aqui, na qual se canta "Quando uma guitarra trina/ Nas mãos de um bom tocador/ A própria guitarra ensina/ A cantar seja quem for". Se tivermos bons materiais à volta — e o Gezo dá muitas vezes o exemplo da culinária — eles também nos ensinam.
G - Isto aqui é um grande frigorífico recheado de ingredientes que vamos recolhendo.

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Como definem o vosso trabalho?
J - Temos muitas coisas em comum, é um facto, e isso é muito importante na essência da Oficina. Se, por um lado, nos cansamos depressa das coisas, por outro, temos muita vontade de experimentar e fazer diferente. Acaba por ser cíclico. Apesar de ser em meios e caminhos diferentes, o que nós expressamos acaba por ser sempre recorrente. Os materiais são sempre caminhos para contarmos uma história.
G - Se quiserem colocar um rótulo, uma etiqueta e dizerem "Os meninos da Oficina Marques produzem"... Histórias. Que podem ser quadros, ilustrações, colagens, relicários, postais, cerâmica. Quando chegamos aqui nunca temos a mesma coisa para fazer, não é um trabalho repetitivo. Os processos são repetitivos e demorados, mas temos sempre uma história diferente para contar.

Isso dá-vos muita liberdade, não estão presos só a uma coisa.
J - Há uma linguagem e um universo que partilhamos, e nós vamos navegando nos vários objectos para enriquecer cada vez mais as histórias.

E esse universo é a vossa marca.
G - É uma impressão digital, uma marca, uma personalidade.
J - Muitas vezes descobrimos quem somos pelos olhos dos outros. Têm-nos dito muitas vezes que o que fazemos é uma visão do Portugal moderno. Deixou-nos muito confusos, ao princípio, mas também nos ajudou a encontrar-nos. Efectivamente, há uma ideia de portugalidade. O Gezo é brasileiro mas vive em Portugal...
G - Há 253 anos...
J - ...ele é meio-meio, eu nasci em Portugal e há um universo aqui que efectivamente partilhamos. De repente essa visão exterior fez-nos pensar. Se calhar o nosso trabalho também é sobre este país, as nossas raízes, aquilo que absorvemos e convertemos na nossa visão. Falamos muito sobre o que está à nossa volta, como o mar (quando trabalhamos os sereios — já tivemos muita gente a censurar porque essa palavra não existe), com o Alentejo, a cerâmica, e sempre tudo com um toque espiritual e místico. Trabalhamos esse tema com respeito, porque Portugal também é isso. Pegamos nessa diversidade que o país tem. Não temos um país assim tão grande, mas, se o correres de Norte a Sul, vais encontrar universos diferentes. Se calhar absorvemos isso tudo e criamos aqui uma bolha que tenta espontaneamente reflectir o que está à nossa volta. Os objectos e a arte têm o poder de criar identidade e, se calhar, precisamos de pensar um bocadinho nisso: quem somos nós.


Como é um dia na Oficina Marques?
J - Há dias em que estamos de porta aberta - de quarta a Sábado. Noutros estamos de porta fechada porque há processos que não conseguimos interromper. A loja abre às 10h30 e chegamos um bocadinho mais cedo. Para nós é um ritual e uma meditação.
G - Eu acendo as minhas velinhas e agradeço o dia e por poder estar aqui. Faço isso logo de manhã. Depois regamos as plantas, pomos um bom perfume no espaço com uma vela. É assim que a Oficina acorda.
J - Depois de deixar o ar entrar, temos as coisas mais ou menos planeadas. Num dia em que entrem pessoas, mostramos a oficina, falamos um bocadinho, voltamos a trabalhar. Gosto desses dias com gente. Apesar de estarem mais ou menos planeados, os dias são sempre incertos.


O que mudou com a pandemia?
J - Há muita gente que vem, mas que avisa antes. Antes, entrava muita gente que estava a passar na rua e não conhecia o projecto. Nós fazíamos uma apresentação, mas gostamos sempre de deixar as pessoas à vontade, porque temos muita coisa e é preciso tempo para absorver.
G - A pandemia mudou o ritmo de "um dia normal". Os dias não estão normais, essa coisa do novo normal não existe. O período em que tivemos de ficar fechados, foi um período super produtivo.
J - Durante o confinamento viemos trabalhar todos os dias mas sabíamos que era um compromisso diferente. Sabíamos que, naqueles dias, não ia entrar ninguém. No nosso estado de espírito era só oficina. Quando estamos de porta aberta já sabemos que além da oficina há sempre a loja e a galeria. Foi um momento muito introspectivo e de produção.
G - Agarrámo-nos à força de viajar através das peças.
J - Só nos apercebemos da realidade quando saímos daqui. Isto é uma bolha. Não sabemos o futuro...mas nós nunca sabemos o futuro. Quem trabalha com arte sabe que essa incerteza é a própria vida. Mas sinto que as pessoas despertaram para apoiar a comunidade e que somos um só. Tivemos mais pessoas atentas ao que nós fazemos — e a outros projectos que conhecemos.
G - As pessoas ligaram-se a peças com significado, com história. Fizemos uma pequena loja online associada ao site, com pequenos objectos e fáceis de enviar e transportar.


Como é que está a correr essa aventura no digital?
J - Temos mais pessoas a ver, mais interessados.
G - Temos feito uma campanha, temos divulgado as peças nas redes sociais, o que tem trazido retorno. As pessoas não estão passeando na rua mas estão com os seus telemóveis. A nossa comunicação tem sido nesse sentido, o de presentear com o local, o especial, com o manual, o artesanal.


Como integram o vosso trabalho artesanal na lógica consumista do mundo actual?

J - O mundo precisa dessa análise. Tudo é tão fácil, o consumo é tão imediato que isso não é bom para ninguém, não é sequer sustentável. Nós próprios pensamos sobre isso  — porque todos fazemos parte dessa máquina — , o que podemos travar e tentar fazer de outra maneira. O nosso contributo é esse: fazemos peças, muitas delas com coisas que já morreram e às quais estamos a dar uma nova vida. Reutilizar, pegar em coisas que já existem, consumir de forma diferente, valorizar as peças de forma diferente. Às vezes, temos esse discurso e depois, na prática, fazemos mais do mesmo. Temos de ir acalmando e percebendo qual é essa forma de consumir menos. Há um foco grande no minimalismo, mas não é essa a nossa visão do mundo. Temos de consumir menos e de perceber como é feito, o que está por trás.
G - Em vez de encher e de atulhar de coisas que não fazem sentido. Isso fez-nos pensar e reflectir num conceito que temos aplicado que é o “pouco feito com muito". Parece uma antítese, mas é feito com muito amor, carinho, tempo, dedicação, respeito, conhecimento.
J - É a garantia de que as coisas que fazemos são feitas com muito. Acreditamos nesse muito: queremos viver muito, queremos muita alegria, muita energia, não partilhamos a visão do mundo pequenina, de só se ter uma coisa.
G - O minimalismo não tem de ser triste e bege. Pode ser feito de muito.
J - Os estrangeiros que passam aqui, dizem sentir falta dessas coisas nos seus países. Nós ainda temos muitas tradições. Se sairmos daqui e formos a São Pedro do Corval, que não fica sequer a duas horas, lá existe esse muito: as pessoas que sabem fazer. Portugal é feito de muito e se soubermos usar o lado positivo deste conteúdo que faz parte da nossa cultura, temos bastante a ganhar e a ensinar aos outros.